Medida é alvo de críticas e é considerada inconstitucional por contrariar leis federais e invadir a competência do sistema educacional
Uma decisão recente do Conselho Federal dos Corretores de Imóveis (COFECI) está provocando um intenso debate em meio jurídico, educacional e no mercado de trabalho. Trata-se da Portaria COFECI nº 085/2025, que veta a aceitação de diplomas técnicos emitidos por meio do chamado processo de certificação por competência—aquela modalidade regulada pelo artigo 41 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que reconhece oficialmente saberes adquiridos no mercado de trabalho e fora da escola tradicional.

A medida, unilateralmente editada pelo COFECI, estabeleceu que apenas diplomas obtidos por meio de cursos regulares de Técnico em Transações Imobiliárias (com mínima carga horária fixada) ou Cursos Superiores em Gestão Imobiliária reconhecidos pelo Ministério da Educação (MEC) seriam aceitos para registro profissional. Documentos por avaliação de competências profissionais, conforme prevê a LDB, passaram a ser recusados.
Assinatura unilateral fere transparência e regimento interno
O processo de implementação da portaria também é motivo central da controvérsia. Conforme apontado pelo Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro (CEE-RJ) em ofício enviado ao COFECI, a Portaria nº 085/2025 foi assinada de forma deliberada e isolada pelo próprio presidente do COFECI, sem a assinatura do Diretor-Secretário, em desacordo com o artigo 19, inciso I, do Regimento Interno do COFECI. Além disso, não houve submissão ao Plenário do Conselho, cuja competência para deliberação sobre matérias dessa natureza é expressa nos normativos internos.
Outro fato relevante é que a portaria sequer foi publicada no Diário Oficial da União, etapa fundamental para que atos normativos de autarquias federais tenham validade e conhecimento público. Especialistas apontam que a ausência de publicação fragiliza a legalidade e amplia a insegurança jurídica para os profissionais atingidos pela vedação.
O Presidente do CEE-RJ destacou em seu comunicado oficial que tais falhas procedimentais tornam o ato ainda mais passível de questionamento, já que extrapola as atribuições individuais do presidente do COFECI e descumpre as regras internas da própria instituição.
Dados Revelam Negativa Sistematizada em Diversos Estados
Dados obtidos com exclusividade mostram que, somente nos estados de São Paulo, Mato Grosso e Goiás, aproximadamente 120 pessoas formadas por meio do processo de certificação por competência tiveram até mesmo o protocolo de seus pedidos de inscrição negado junto aos respectivos Conselhos Regionais. Ou seja, até mesmo a possibilidade de análise ou recurso administrativo foi sumariamente descartada, impedindo o ingresso formal desses profissionais no mercado de trabalho regulamentado.
O número indica um cenário ainda maior de exclusão administrativa, já que diversas outras solicitações tendem a ser rejeitadas em caráter nacional, ampliando a controvérsia e o potencial de judicialização em todo o país.
Infrações a Normas Superiores
O caso ganhou maior repercussão após o Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro (CEE-RJ) se posicionar formalmente contra a Portaria do COFECI. Em ofício enviado ao órgão federal, o CEE-RJ apontou uma série de ilegalidades no texto, classificando-o como frontalmente contrário ao dispositivo constitucional e ao ordenamento jurídico brasileiro.
Segundo o Conselho Estadual, a portaria do COFECI desrespeita não apenas a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, mas também a própria Constituição Federal, que consagra o direito ao livre exercício profissional, desde que o cidadão cumpra as qualificações definidas em lei. “A restrição imposta pelo COFECI extrapola sua competência, ao negar validade a diplomas expedidos nos termos da legislação em vigor, afrontando o princípio da legalidade e da igualdade de acesso ao mercado de trabalho”, pontua o texto.
O ofício cita, ainda, diversos pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE), decisões do Ministério da Educação e vasta jurisprudência do judiciário federal que reiteram: é competência exclusiva do sistema educacional, sob supervisão legal do MEC, reconhecer formas diversas de qualificação, incluindo processos de certificação de saberes adquiridos fora do ambiente escolar tradicional. Ao sistema profissional cabe apenas a fiscalização do exercício profissional, não a definição de critérios de formação.
Certificação por competência: respaldo em lei federal
A certificação por competência visa reconhecer oficialmente as habilidades e conhecimentos de trabalhadores que, ao longo da vida, aprenderam sua profissão, mesmo sem trajetória escolar linear. Essa modalidade é uma resposta à necessidade de inclusão, valorização do saber prático e rapidez para suprir carências do mercado de trabalho, especialmente para adultos com experiência comprovada e que buscam regularizar-se perante o sistema formal.
Desde a promulgação da LDB em 1996, o mecanismo de certificação profissional tornou-se uma ferramenta legítima de inclusão e regularização profissional. E, conforme os conselhos de educação, seus diplomas, quando emitidos por instituições de ensino autorizadas e validados nos sistemas oficiais (como o SISTEC/MEC), têm validade nacional e são aptos a permitirem o exercício das profissões regulamentadas.
A Portaria COFECI nº 085/2025 ignora tais dispositivos e restringe de forma ampla toda a categoria de profissionais certificados por competências, ainda que seus diplomas sejam legalmente emitidos e válidos em todo o território nacional.

Risco de judicialização e insegurança jurídica
A medida do COFECI foi tomada sem consulta ao plenário do conselho e sem publicação no Diário Oficial, segundo o CEE-RJ, em violação ao regimento interno do próprio órgão federal. Mais grave: usurpou competência exclusiva do Ministério da Educação e dos Conselhos de Educação, indo além de seu papel de polícia do exercício profissional.
Vários precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal afastam qualquer poder de conselhos profissionais em questionar diplomas emitidos nos termos da legislação educacional, reiterando que “aos conselhos profissionais, de forma geral, cabem tão-somente a fiscalização e o acompanhamento das atividades inerentes ao exercício da profissão, o que certamente não engloba nenhum aspecto relacionado à formação acadêmica”, como já decidiu o STJ.
A postura do COFECI, segundo entidades educacionais e juristas, já afeta centenas de registros, impulsionando movimentos de judicialização coletiva que podem sobrecarregar o Judiciário nos próximos meses.

Reação da comunidade e próximos passos
O Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro, em resposta oficial, não apenas repudiou a medida como pediu formalmente sua revogação, em nome da segurança jurídica de todo o sistema educacional brasileiro. Cópias do ofício foram encaminhadas a diversos órgãos federais para que a legalidade seja restabelecida.
Especialistas alertam: “Trata-se de um precedente perigoso, que fragiliza o pacto federativo, pois conselhos profissionais não podem restringir direitos nem sobrepor-se ao sistema legal da educação nacional. Isso, além de ser passível de anulação judicial, prejudica trabalhadores, fomenta discriminação indevida e cria insegurança para as próprias empresas do setor”, afirma um consultor em políticas educacionais.
O COFECI, até o momento, não se manifestou sobre o pedido de revogação nem respondeu formalmente aos apontamentos do Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro.
A controvérsia expõe a urgência de diálogo institucional entre sistemas educacionais e conselhos profissionais, para que as balizas da lei sejam respeitadas e se evitem retrocessos na inclusão e na regulação profissional.
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